27.1.10

Culpa do seu não-abraço

(...)
Fui dormir entorpecida de amor, e acordei como uma simples mortal. Sentindo tudo até o que não precisaria. Não chega a ser uma dor-dor. É tão somente uma malemolência. É sentir os dias caminhando a passos de formiga. É querer pintar quantas telas for preciso para eu poder apreciar a obra final. Sem entender que elas têm seu próprio ritmo. Não é possível agir tão grosseiramente. Como quem quer finalizar tudo sem ao menos sentir o que realmente se quer. Carimbar a assinatura pra poder se assossegar. Numa rede de frente ao mar. Sem saber que os dias percorrem ao longo de seu passo. Tão somente o que se faz. Um desassossego interminável. Não vi por onde ele entrou. Talvez eu tenha deixado a janela aberta pro cheiro de tinta esvair-se. Pegou carona com o ar nonsense do dia e repousou em mim. Sem ao menos me pedir licença. Repousou tão aconhegado que eu tive de entregar meu corpo à cama. Tão pesado que me senti embriagada. Largada à esmo, e ninguém me vê e ninguém vem me salvar. Um desassossego que não acha seu lugar. Anda por todos os meios e salpica nada. Nada salpica. Nem o doce e nem o amargo. Se ao menos estes chocolates não fossem de verdade. Se ao menos eu pudesse beber esta tinta cor-de-delícia! Se ao menos estes papéis fossem comestíveis. É certo que eu teria me saciado. A ponto de minha digestão ter se resolvido. A ponto de não precisar mais, de não querer mais. E por querer e precisar é que quero e preciso cada vez mais. Como a vida lá fora, como os dias mais reluzentes, como a obra mais redonda. Como os pés na areia. Como o sopro na vela do bolo de aniversário. Como a noite de amor que não tem fim. Como se fosse o escudo que me protege. A minha capa de chuva. O meu guarda-sol. É como estar dentro da carruagem. É como dormir na minha cama. É como deitar na grama.
(...)


25.1.10

Perdoando Deus

“(...) Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Por que eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. (...) É porque sempre tento chegar ao meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. (...) E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. (...) Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. (...) Talvez eu tenha que chamar de “mundo” esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho da minha natureza? (...) Eu que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu.”

(clarice lispector)