27.1.10

Culpa do seu não-abraço

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Fui dormir entorpecida de amor, e acordei como uma simples mortal. Sentindo tudo até o que não precisaria. Não chega a ser uma dor-dor. É tão somente uma malemolência. É sentir os dias caminhando a passos de formiga. É querer pintar quantas telas for preciso para eu poder apreciar a obra final. Sem entender que elas têm seu próprio ritmo. Não é possível agir tão grosseiramente. Como quem quer finalizar tudo sem ao menos sentir o que realmente se quer. Carimbar a assinatura pra poder se assossegar. Numa rede de frente ao mar. Sem saber que os dias percorrem ao longo de seu passo. Tão somente o que se faz. Um desassossego interminável. Não vi por onde ele entrou. Talvez eu tenha deixado a janela aberta pro cheiro de tinta esvair-se. Pegou carona com o ar nonsense do dia e repousou em mim. Sem ao menos me pedir licença. Repousou tão aconhegado que eu tive de entregar meu corpo à cama. Tão pesado que me senti embriagada. Largada à esmo, e ninguém me vê e ninguém vem me salvar. Um desassossego que não acha seu lugar. Anda por todos os meios e salpica nada. Nada salpica. Nem o doce e nem o amargo. Se ao menos estes chocolates não fossem de verdade. Se ao menos eu pudesse beber esta tinta cor-de-delícia! Se ao menos estes papéis fossem comestíveis. É certo que eu teria me saciado. A ponto de minha digestão ter se resolvido. A ponto de não precisar mais, de não querer mais. E por querer e precisar é que quero e preciso cada vez mais. Como a vida lá fora, como os dias mais reluzentes, como a obra mais redonda. Como os pés na areia. Como o sopro na vela do bolo de aniversário. Como a noite de amor que não tem fim. Como se fosse o escudo que me protege. A minha capa de chuva. O meu guarda-sol. É como estar dentro da carruagem. É como dormir na minha cama. É como deitar na grama.
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